Da prateleira que hoje empilha 15 livros, foi na minha primeira leitura do ano, 'A Mais Recôndita Memória dos Homens' do Mohamed Mbougar Sarr, que uma reflexão começou a tomar a forma desse texto.
Na história, o Diégane obceca no livro fictício 'Labirinto do Inumano', do T.C. Elimane, que pra ele representava o texto perfeito, se referindo ao autor como “um desses astros que aparecem uma única vez no céu da literatura”. O enredo investigativo, no entanto, retorna até a época em que a obra-prima foi lançada, revelando que críticos literários consideraram o livro como um mero um conjunto de recortes de clássicos da literatura.
As críticas acusavam “T.C. Elimane de ter plagiado em seu romance o mito fundador de uma etnia do Senegal”, chegando a apontar que no romance foram encontrados “inúmeros empréstimos de grandes textos da literatura”, sendo logo descoberto que “pelo menos metade do romance entremeava a uma criação original uma sutil colagem de citações”.
Sem deixar de reconhecer o sentido político do livro, e orientado às tecnologias como sou, passei a tentar entender se cabia ali um comentário sobre a produção de texto por IA generativa. Até acabei provocando uma troca com um mutual das redes sociais, mas em retorno, apesar de educado e bem justificado, recebi o não reconhecimento da minha teoria. Pra ele, no livro só haviam reflexões sobre literatura, nada sobre tecnologia.
É verdade que as quase 400 páginas do livro não trazem qualquer abordagem sobre tecnologia, sendo mais fácil identificar os temas de política e identidade de autores africanos na França, e a discussão sobre a legitimidade destes migrantes para contar (ou recontar) as histórias e mitos da colônia quando escrevem sob influência da literatura européia. Também não encontrei qualquer menção sobre este ponto em específico nas entrevista dadas pelo autor.
Mas até aí eu já tava Diégane das ideias, e foi no próprio Mbougar Sarr que encontrei a motivação pra defender uma interpretação que conectasse o romance e a inteligência artificial. Em entrevista publicada na revista Quatro Cinco Um, li a citação:
“Jamais tente dizer do que fala um grande livro. Ou, se você o fizer, eis a única resposta possível: não fala de nada. Um grande livro sempre fala de nada e, no entanto, tudo está lá”
O Sarr não deve mesmo ter considerado que, assim como o Elimane escreveu seu romance magistral a partir de “reescrituras ou colagens de outros textos”, a produção de textos por ferramentas de IA generativa começa justamente pela raspagem de tudo que já foi escrito na internet, o que pode incluir os mesmo livros clássicos citados na sua obra, mas também artigos, postagens em sites e todo tipo de interação online.
Ainda assim, seu livro serviu pra mim como agente de sucessivas reflexões sobre como devemos pensar no valor atribuído às produções textuais realizadas a partir dos modelos de IA generativa: questionar sua autoria: discutir a apropriação: entender se há no produto do copia e cola elaborado essência de criação literária.
“Será que as coisas mudaram hoje? Será que estamos falando de literatura, de valor estético ou de pessoas, […]? Será que estamos falando de escrita ou de identidade, de estilo ou de telas midiáticas que abrem mão de ter estilo, de criação literária ou de sensacionalismo da personalidade?” Mohamed Mbougar Saar - A Mais Recôndita Memória dos Homens
Enquanto acompanho com igual empolgação os avanços da tecnologia e os debates surgidos a partir disso, só espero não ser o próximo assombrado pelo espírito do Elimane após publicar essa crônica.
